Intervalos, o universo e tudo mais.

Intervalos, o universo e tudo mais.

por William Gnann -
Número de respostas: 1

Estava fazendo uns testes bobos envolvendo os harmônicos e, exceto por algumas oitavas, alguns resultados estranhos apareceram:

1) É verdade que o terceiro harmônico sempre se aproximará de uma "quinta"?

2) O quinto, no caso, se aproximaria da "terça maior"?

Isso tem, de fato, alguma relação principalmente com os acordes maiores?

Em resposta à William Gnann

Re: Intervalos, o universo e tudo mais.

por Marcelo Queiroz -

Oi, William!

Sua pergunta é muito interessante e dá muito pano pra manga. O subject escolhido é bem apropriado... :-)

A relação intervalar entre o k-ésimo harmônico e a fundamental é dada pela razão das frequências k*f0 e f0, ou seja, é k. Dada a nossa tendência a tratar sons que distam um número inteiro de oitavas (ou frequências da forma 2nf0) como "equivalentes" (de fato pode-se usar a noção algébrica de classes de equivalência para modelar esta semelhança perceptual), é natural se perguntar qual é o intervalo formado pelos dois harmônicos se trazidos para a mesma oitava. A resposta é dividir kf0 por uma potência de 2 apropriada (kf0/2floor(log2(k))). Desta forma você pode construir a sequência de intervalos musicais 2/1 (oitava), 3/2 (quinta justa), 5/4 (terça maior), 6/4=3/2 (outra quinta justa), 7/4 (sétima menor, 30% desafinada para baixo em relação à afinação de um piano), 8/4=2/1 (outra oitava), 9/8 (segunda maior), 10/8=5/4 (outra terça maior), 11/8 (quase um trítono, meio baixo em relação ao piano), 12/8=6/4 (outra quinta justa), 13/8 (esse é difícil, fica bem entre sexta menor e sexta maior), 14/8 (outra sétima menor), 15/8 (sétima maior),...

A tradução em intervalos musicais de uma destas frações pode ser feita pela expressão 12*log2(fração), que dá a quantidade equivalente em semitons "temperados". Estes semitons rigorosamente iguais (correspondentes à razão 2^(1/12)) compõem a escala do temperamento igual, que nasceu nesta forma apenas no final do século XVIII. Até então, todo mundo usava ou escalas "justas" ou escalas "temperadas" pelo ouvido.

Escalas justas são aquelas que nascem dos intervalos obtidos "de ouvido", que minimizam a sensação de "batimentos" ou de rugosidade da textura sonora. Estas escalas dependem de um referencial fixo, ou uma tônica (que define uma tonalidade), e definem as afinações das outras notas em função desta tônica. Assim, se você fixou uma frequência f0 (em princípio qualquer) para uma nota dó, por exemplo, o sol deveria ter uma frequência de 3f0/2 e um mi 5f0/4. Se você quer tocar um acorde de Sol maior afinado, você precisa que o ré seja a quinta do sol (ou seja, 3(3f0/2)/2 = 9f0/4 ou 9f0/8, escrevendo uma oitava abaixo) e que o si seja a terça maior do sol (ou seja, 5(3f0/2)/4 = 15f0/8). Para a escala de dó maior ficaria faltando apenas o fá e o lá, que são meio distantes dos harmônicos de dó, então eles são construídos "ao contrário": a razão que fica uma quinta justa abaixo de f0 é 2f0/3 (pois multiplicando-a por 3/2, que é uma quinta justa, se chega a f0), e uma terça maior acima desta nota é 5(2f0/3)/4 = 10f0/12. Estas duas notas podem ser trazidas para a oitava principal multiplicando-se por 2. As relações intervalares desta escala justa são: 1, 9/8, 5/4, 4/3, 3/2, 5/3, 15/8, 2. Pitágoras adorava estes intervalos (não é piada), mas existe um outro sistema de afinação pitagórica que é um pouco mais rígida, só aceitando intervalos da forma 3k/2m.

Na escala justa os acidentes são tratados caso a caso: um ré sustenido teria uma afinação diferente de um mi bemol por exemplo, porque eles teriam que formar terças maiores com si e com sol, respectivamente. Chegaram a existir teclados históricos com teclas separadas para estas notas. As escalas temperadas foram uma invenção necessária para permitir que um mesmo instrumento, difícil de ficar reafinando a cada música (como um cravo ou um intrumento com trastes como a viola da gamba), pudesse tocar em diversas tonalidades diferentes (Dó maior, Lá maior, Sol menor, etc...). Assim todas as notas seriam desafinadas só um pouquinho, na esperança de que todos os acordes maiores e menores pudessem ser tocados sem provocar enjôos, etc. Havia uma grande quantidade de escalas temperadas na época em que Bach escreveu seu Cravo Bem-Temperado, onde uma sequência de prelúdios e fugas percorriam todas as tonalidades maiores e menores possíveis. Meantone, Werkmeister e Vallotti são nomes de alguns desses temperamentos, que até hoje mantêm sua importância na performance de música do período Barroco.

Bom, tô ficando cansado de escrever e vocês devem estar cansados de ler  :-)

Tem muito mais assunto relacionado. No livro do Moore (Elements of Computer Music) tem uma discussão breve sobre o assunto em um dos apêndices).